Israel Russo — O Método Ignóstico: A Reforma do Ignosticismo

Introdução

Na história da humanidade, são incontáveis as concepções de Deus ou deuses formados por uma tribo, nação ou até mesmo por um filósofo em particular; na mesma proporção, surgem as tentativas de provar a não existência desses entes que transcendem a natureza das coisas. O principal entrave para solução desse debate é que ambas as partes se apoiam em bases incongruentes – em adendo reconheço que existem sim tentativas congruentes de se provarem existência de Deus, mas elas serão tratadas em breve; uma das intenções deste artigo é preparar o terreno para tais discussões – e mostram-se indébitos, inúteis e pueris. Torna-se então necessário formular – que neste caso é reformular – um método que torne possível uma investigação consistente a respeito da natureza e da existência de Deus.

Talvez você nunca tenha ouvido falar do termo “ignosticismo”; pode ser que conheça a ideia ou fragmentos da teoria que o termo representa, mas sem esse mesmo título. Ou conhece o termo e provavelmente notou a escassez de artigos e discussões sobre esse riquíssimo assunto na internet e o pequeno número de filósofos que abrangem essa corrente. Em minhas pesquisas, não foi possível esclarecer o porquê do anonimato do ignosticismo, mas um dos fatores mais prováveis é que o debate teológico está massivamente limitado ao senso comum e ao desejo de provar seu ponto sem perceber que são necessários pressupostos delimitadores para tal debate. Outro fator notável é a “simplificação” feita sobre o termo ignosticismo nos motores de busca da internet.

“Uma forma de agnosticismo na qual o teísmo é visto como incoerente devido à intestabilidade científica de um Deus ou deuses.”

A frase acima se trata de uma definição de ignosticismo retirada do site “Wikidicionário”. No decorrer do artigo, será possível enxergar o quanto essa tentativa de definição está errada e é completamente insustentável. De início, é fácil perceber a incompatibilidade dos termos, já que o termo I (ignosticismo) não poder ser derivado do termo A (agnosticismo); ora, o agnosticismo pode ser tratado como uma corrente de pensamento que em sua essência, já estão contidas conclusões intrínsecas à definição do próprio termo. Enquanto que, o ignosticismo, em uma retratação mais profunda, se apresenta como um método que possibilita as conclusões consistentes de correntes como A. Entender o ignosticismo em sua natureza como um método (caminho ou meio), significa estar preparado para uma investigação de uma causa transcendente. É por esse fator que o debate teológico em sua esmagadora maioria resume-se a um debate pobre e ao mesmo tempo pedante. Os pontos defendidos e atacados são contingentes, relativos ou que (absurdamente) tentam se basear na experiência ou na “testabilidade” científica para provar ou refutar a existência de Deus, mas poucos percebem a alteridade do que se debate. É então chegada a hora do ignosticismo entrar em cena, como um fio condutor do debate teológico; o ignosticismo não se limita à sua definição etimológica ou um entendimento do senso comum de uma simples consciência da ignorância, pelo contrário, o ignosticismo filosófico assume os erros e incongruências cometidas até o momento e postula um método para que um novo caminho seja trilhado e não se cometa as mesmas falhas.

A Reforma do Ignosticismo

 

I – Lei da Concordância Semântica

O termo “ignosticismo” foi cunhado pelo rabino Sherwin Theodore Wine (1928 – 2007), entretanto, os conceitos que compõe esse termo já haviam sido explanados anteriormente, mesmo que indiretamente. Pode-se entender o ignosticismo (até o momento) como o seguinte parâmetro:

“Nenhuma investigação a respeito da natureza e da existência de Deus pode ser postulada sem que antes o conceito de Deus seja devidamente definido.”

Entretanto, é necessário que haja uma reformulação do ignosticismo, para que este seja mais abrangente e cumpra com o princípio que o define como método. Nessa reformulação, o parâmetro supracitado será apenas uma parte que compõe a estrutura do ignosticismo e tal parâmetro denomino como “lei de concordância semântica”. Tradicionalmente o ignosticismo se limitava a essa lei, pois reconhecia que seria impossível uma conversação em que não houvesse uma concordância semântica (o que já foi percebido pelo filósofo Sócrates e hoje é remetido pelo filósofo Habermas para todos os assuntos). A extensão postulada na reformulação do ignosticismo também pode ser compreendida como outras leis, porém, estas estão baseadas em fundamentos muito mais complexos e exigem um tratamento especial e pormenorizado, que é o que se segue no artigo.

II – Lei da Contraposição ao Antropomorfismo

anaximandro

O segundo pilar do ignosticismo pode ser encontrado em filósofos muito antigos, como exemplo, no segundo dos sete sábios da Grécia: Anaximandro de Mileto (séc. VII a.C. – VI a.C.). Discípulo de Tales de Mileto, ele reconheceu a busca de seu mestre por um princípio universal de todas as coisas (o arché), mas discordou de Tales que afirmava que esse princípio seria a água; Anaximandro critica a tese de seu mestre e conclui:

“Essa substância não deve estar sujeita às limitações da natureza e, portanto, deveria ser ilimitada; essa substância deve ser o princípio de todas as coisas que existem – não somente a natureza e nosso mundo, mas também os céus e todos os outros mundos possíveis.”

Com efeito, o arché seria uma substância que transcende os limites de nossos sentidos; o filósofo denominou seu arché como “ápeiron” que significa “o indeterminável”. Assim como seu mestre determinou seu arché como sendo o próprio Deus, Anaximandro determinou que o ápeiron seria Deus. Mesmo sendo uma filosofia primitiva, suas premissas são congruentes; primeiro ele reconhece que o princípio a qual procura, transcende à natureza das coisas – o que também é postulado em praticamente todas as concepções de Deus – e, desse modo, torna-se impossível experimentá-lo (observá-lo) por meio de nossos sentidos, que compõe a natureza das coisas. Nota-se que um filósofo pré-socrático já tinha a noção de que a investigação sobre Deus não deveria ser pautada na experiência, com efeito, postular uma “testabilidade” científica é pura ignorância.

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Pouco tempo depois, surge outro filósofo – por sinal, pouco estudado – em Cólofon que também compôs o quadro do ignosticismo na história. Xenófanes (570 a.C. – 475 a.C.) nasceu em Cólofon, na Jônia (mesma região de Anaximandro); acredita-se que ele teria sido mestre de Parmênides, o pai da ontologia, mas o destaque principal de sua filosofia diz respeito ao seu combate ao antropomorfismo. Segundo ele, se os animais pudessem pintar as paredes, pintariam os deuses com formas de animais, ou seja, com a própria forma; com efeito, essa seria uma crítica aos homens que “desenham” Deus como sendo a imagem do próprio homem, sendo que Deus, supracitado em Anaximandro, seria uma substância que transcende toda a natureza, sendo indébito atribuí-lo concepções antropomórficas. Desse modo, a segunda lei ignóstica pode ser formulada, a Lei de Contraposição ao Antropomorfismo:

“Para que Deus, um ente de máxima excelência possa ser definido de acordo com os limites da razão, não é possível que os conceitos aplicados à estrutura de sua definição sejam abstraídos do reino dos valores ou equivalentes aos conceitos limitados da natureza.”

Com efeito, conceitos abstraídos do reino dos valores – a moralidade, benignidade, maldade, amor, liberdade, justiça etc. – e aqueles que correspondem às limitações da natureza, mostram-se subjetivos – interdependentes do sujeito – e contingentes. Sendo assim, como seria possível então uma investigação a respeito da natureza e da existência Deus? Como é possível defini-lo? Para tal, é preciso antes, entender epistemologicamente as limitações da razão humana.

III – Lei da Intestabilidade Científica

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Avançando mais de dois milênios no tempo, mais especificamente em 1781, o filósofo alemão Immanuel Kant (Königsberg, 22 de abril de 1724 – Königsberg, 12 de fevereiro de 1804) publicou sua mais estimada obra: Crítica da Razão Pura. Esta obra realizou uma revolução metodológica no pensamento filosófico que se perdurou até os dias de hoje, a revolução que determinou os limites da razão humana, a noção do que é conhecimento e como se dá o conhecimento.

Em Kant, pode-se perceber que todo conhecimento tem sua origem na experiência, entretanto, o filósofo alemão divide o conhecimento em dois tipos, o conhecimento empírico – que tem sua gênese na experiência – e o conhecimento a priori – que não tem sua gênese na experiência. O primeiro não pode ser universalizado, pois sua extensão é arbitrária de validade, enquanto o segundo subdivide-se entre conhecimento a priori puro a priori impuro. O conhecimento a priori impuro depende de regras gerais e conceitos adquiridos na experiência, já o conhecimento a priori puro independe totalmente de qualquer experiência. Ora, se o conhecimento empírico, devido à sua contingência e a impossibilidade de experimentar a coisa-em-si, não pode ser universalizável e também não é necessário, como seria este capaz de realizar uma investigação a respeito de algo que precisa ser universal e necessário? Evidentemente, o conhecimento empírico não é apto para compor o ignosticismo enquanto método por não corresponder as delimitações de suas leis. A definição supracitada do Wikidicionário expõe cada vez mais sua incongruência, pois, se o conhecimento empírico é insuficiente para tal investigação, a intestabilidade científica não deve ser nem mesmo postulada; seria o mesmo que estudar a gramática de acordo com as fórmulas da química. Logo, defini-se a Lei da Intestabilidade Científica:

“O conhecimento científico empírico, por sua contingência e relatividade, deve ser abandonado para que se chegue a uma concepção de Deus universal e necessária.”

Se o conhecimento empírico não possui capacidade de comportar a ideia de Deus, e inevitável a conclusão que o único tipo de conhecimento apto para esta tarefa é a priorístico. O conceito de Deus deve ser necessário, para isso, a razão deve o conhecer a priori; mas seria a priori independente de qualquer experiência? Para responder essa questão, basta analisar um conceito a priori puro, o espaço. Segundo Kant:

“O espaço é a forma das aparências dos sentidos externos.” (Crítica da Razão Pura, 1781, p.35)

O espaço é entendido como Uno (unidade) indissolúvel da mente humana, que só pode entendê-lo como sendo Uno, pois conceber mais de um espaço significa conceber partes de um todo; a forma, neste caso, é a ordenação da multiplicidade das aparências, que são objetos indeterminados da experiência. Ou seja, o espaço é uma condição necessária para a possibilidade da experiência; o conceito de espaço existe de antemão para que o sujeito possa relacionar que alguma coisa exterior. Se o conhecimento a priori puro precisa existir de antemão, for independente de regras gerais e conceitos adquiridos na experiência, Deus não é um conceito a priori puro. O próprio conceito de necessário e universal não existe de antemão no sujeito, logo, Deus pode ser concebido apenas por meio do conhecimento a priori impuro. Entretanto, a tarefa de realizar essa investigação está designada para outro artigo, pois esse cumpre com sua intenção apenas reformulando a ideia de ignosticismo.

Conclusão

Agora que o ignosticismo está reformulado é possível compreender sua excelência e necessidade (essencial). Para organizar, é indispensável uma definição final do que é ignosticismo:

“O Ignosticismo é um método que determina os parâmetros e os limites da investigação a respeito da natureza e da existência de Deus.”

Sendo o ignosticismo tal método delimitador, seu esqueleto é composto por três leis: lei da concordância semântica; lei da contraposição ao antropomorfismo; lei da intestabilidade científica. Esses três pilares – justificados no decorrer do texto – sustentam o ignosticismo que serve como um filtro para a definição de Deus, isto é, o ignosticismo não apenas postula uma concordância entre debatedores do assunto, mas também fornece os meios necessários para que essa concordância possua um conceito isento de contradições. Nenhuma concepção de Deus existente no âmbito da religião passa nesse filtro; concepções de muitos filósofos também são incapazes de passar. Quando o método ignóstico é seguido e suas leis respeitadas, chega-se a uma definição de Deus necessária e universal, tornando-se possível uma investigação e um debate teológico de alto nível.

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